Eu acho que a maior dificuldade da profissão de jornalista não é nada ligado à “técnica” da profissão. Não é nada relacionado às técnicas de entrevista e reportagem, que a gente aprende na faculdade, nem a estrutura de uma matéria, nem enquadramentos de câmera, nem edição, nem fotografia. Não é nem mesmo a sociologia, a psicologia da comunicação, a linguística, nem todas as humanidades que aprendemos, ainda que eu ache de suma importância aprender tudo isso.
Acho que a dificuldade maior em nossa profissão é ir pra rua, para o mundo, e captar a realidade, se confrontar com ela, se encontrar com esta realidade tão complexa e que nos deixa perplexos.
Lembro que uma das minhas primeiras entrevistas – eu ainda estava na faculdade – foi em uma ONG que trabalhava com adolescentes infratores. Eu e minha colega pedimos para entrevistar dois meninos cujo caso fosse particularmente difícil, para colher depoimentos para a matéria. O coordenador sorriu, menou a cabeça dizendo que compreendia, levantou-se. Voltou com dois rapazes negros, um mais franzino, o outro mais forte, que sentaram-se nervosos em nossa frente.
Não tinham mais de 15 anos. O mais magrinho começou a falar, contou sua história: aos 11 anos, envolveu-se com um assassinato, depois com prostituição, roubos. O mais forte estava acanhado demais para falar. O outro o estimulou: “Vai, rapaz!”
Suando muito, visivelmente nervoso, o rapaz mais forte começou a falar diante do gravador da gente, como se fosse uma ocasião extremamente especial. Até hoje, nunca entendi por que ele estava tão nervoso. Parecia que nunca tinham parado para lhe dar ouvidos.. para que ele pudesse se expressar. Não sei, não estou dentro do coração dele para saber.
De repente, durante aquela entrevista, mesmo curta, senti uma coisa estranha. Pensei: “E se fosse eu na situação dele?” Senti que o que nos separa eram as circunstâncias, e isso mexeu muito comigo. Entendi que ali haviam garotos que provavelmente se tivessem tido uma família estruturada, apoio, segurança, escola e emprego, aleḿ de serviços básicos como moradia, segurança, alimentação, a vida deles seria muito diferente.
Só mais tarde compreendi que respondemos a estas desigualdades ou com o silêncio, ou com a crença de que “a gente tem o que merece”, muitas vezes baseada em crenças religiosas ou espirituais. Não sei até que ponto isto é verdade mesmo ou apenas a melhor explicação que encontramos para explicar o que não tem explicação.
É com isso e muito mais que o jornalista precisa trabalhar. Não é com leads, com técnicas de redação, não é com diagramções. Lidamos com “realidades”. Perplexidades.
Outra hora é o drama da vida, de todos os dias, que se desenrola diante de nós.
Entrevistei uma vez um fotógrafo já idoso. Ja no fim da entrevista, perguntei a ele se um dos seus filhos havia seguido a sua paixão por fotograar. Lentamente, seus olhos marejaram. A esposa, ao seu lado, me explicou que um dos filhos sim, mas que ele havia morrido num acidaente tempos atrás. Mostrou-me o retrato dele na parede, acima do móvel.
O que faz de um jornalista um grande jornalista, pra mim, não é o furo da reportagem, não é a pompa, nem a dicção, é a sensibilidade e o respeito pela dor alheia, pela realidade de cada um. Acredito que esta seja a verdadeira ética de nossa profissão. Como uma vez ouvi uma grande jornalista falar, o repórter “escuta”. Escuta, e depois escreve a sua versão. Tenta pintar um quadro que represente o que viu e ouviu. Isto é muito complexo. Acho que é o que torna nossa profissão ao mesmo tempo especial e dificil.
Quando eu estava na faculdade, costumava dizer que meu curso era fácil. Hoje vejo que não. Ele parece fácil, mas a verdadeira dificuldade dele aparece no dia-a-dia, na rua, nas entrevistas, nas pesquisas, na vivência da reportagem.
Tags:jornalismo, profissão de jornalista